Gostaria de introduzir duas manifestações culturais imateriais que têm nos animais o seu ativo principal.
A “Capeia Arraiana”, manifestação registada no Inventario Nacional português do PCI desde 2011, é praticada nas localidades da fronteira com Espanha, na zona da Beira Alta de Riba-Côa; consiste numa corrida de touros com recurso a uma estrutura de madeira manejada por trinta homens, chamada forcão, com a qual vão cansando um touro bravo, até o conseguirem segurar à mão. O touros não são feridos ou batidos durante o processo, e no final são devolvidos ao curral. É uma festa de grande sociabilização em torno dos bovinos bravios, da arte de cavalgar e de meneio do gado, inseridas nas festividades religiosas principais das suas comunidades.
A outra manifestação – transversal à cultura portuguesa, mas crucial à cultura do Entre Douro e Minho - é a Matança do Porco. Chegando o tempo frio (normalmente a partir de dezembro, janeiro e fevereiro), matava-se o porco criado em casa, um elemento central na alimentação da família para o resto do ano. A carne era depois processada e conservada por fumeiro ou salga. Devido à importância económica da criação do animal, a matança do porco era uma festa simbólica vicinal – nos aglomerados matavam-se vários porcos, um por casa - de abundância, associando uma cultura gastronómica rica e diversificada a papéis sociais bem definidos (os homens na matança e corne, as mulheres na confeção e conservação. Este é um dos elementos que será alvo de reflexão no caso do Ecomuseu do Neiva, porque ainda há muitas unidades domésticas no Vale do Neiva que criam porco para autoconsumo.
Apesar do avanço de legislação sanitária restritiva derivada das normas da União Europeia, a legislação portuguesa permite o abate de animais criados em contexto doméstico para fins de subsistência e não comerciais; permite, até o abate em matança tradicional organizada por entidades pública ou privadas e que constituam uma manifestação cultural (Despacho n.º 7198/2016, publicado no Diário da República, 2.ª série, N.º 105, de 1 de junho de 2016).
Ora, será que estas manifestações saem do que está acordado na Convenção da UNESCO, de 2003 para o PCI?
Os animais sofrem? Sofrem. Os porcos são abatidos, e mesmo na Capeia Arraiana, onde não se cometem "violências" aos animais, é certo que lhes é provocado stress. Mas a questão do sofrimento animal não aparece mencionado uma vez que seja na Convenção (os direitos humanos, por exemplo, são referidos oito vezes). A Matança do Porco poderá muito bem ser inscrita com o manifestação no inventário nacional de PCI, porque são práticas sociais e rituais, reconhecidas pelas comunidades que as praticam como fazendo parte do seu património cultural, por isso as recriam e transmitem de geração em geração; são propensas ao desenvolvimento sustentável e respeitantes dos direitos humanos. Parece-me que a legislação consagra as condições para que a prática cultural se realize com respeito pelo animais, poupando-os ao sofrimento.
E não se pense que as gentes não os respeitam: dão-lhe, até, nomes carinhosos, como "ruço" e "chico". Afinal, o porco é uma garantia contra a fome.